'Agentes invisíveis': voluntários complementam assistência a migrantes quando o poder público não os alcança

  • 30/10/2025
(Foto: Reprodução)
Voluntários complementam lacunas de políticas de assistência a migrantes Foi em uma noite fria de inverno em Curitiba que as vidas de Marluce Aparecida Baião Bély e Yoana Pérez Gonzalez se cruzaram. Marluce atribui o encontro à intervenção divina. Fazia poucos dias que Yoana, já nas últimas semanas de gravidez, tinha chegado a Curitiba, junto com o marido. O casal enfrentou uma longa travessia que se iniciou em Havana, capital de Cuba. De lá, traziam apenas uma mochila com algumas peças de roupas e a vontade de recomeçar em um lugar diferente, visando um futuro melhor para o filho que ainda não tinha nascido. ✅ Siga o canal do g1 PR no WhatsApp Os dois saíram do país caribenho com um contrato de aluguel de um apartamento no Brasil, porém, a casa estava vazia e não tinha móveis. Aos oito meses de gravidez, Yoana dormia no chão. Foi quando o casal descobriu o contato de Marluce e encaminhou uma foto da casa sem móveis, perguntando se ela tinha como ajudá-los. Imediatamente, a voluntária da ONG Fraternidade na Unidade mobilizou uma rede de solidariedade. Poucas horas depois, o casal tinha o apartamento mobiliado, chuveiro e uma cama para dormir. "Havia outra cubana, que também é migrante e estava aqui há mais tempo. Ela tinha o contato de Marluce e nos passou. Nós escrevemos para ela e ela nos deu toda a ajuda e atenção que estava ao seu alcance. Graças a ela temos as coisas que temos e ganhamos as coisas que doaram. Inclusive, nos indicou muitas coisas sobre os papéis, sobre trabalho…", detalha Yoana. Sem móveis em casa, Yoana dormia no chão aos 8 meses de gravidez Arquivo familiar "Ela mudou nossas vidas. Veja, estávamos tristes, estávamos dormindo no chão. Passamos três dias dormindo no chão", detalha Eudy Centeno Guerra, marido de Yoana. De baixa estatura, mas muito enérgica e com uma rede de contatos poderosa, a aposentada Marluce fala orgulhosa das vezes em que conseguiu ajudar outras famílias. "Eu sempre acreditei no cristianismo enquanto comunidade de pessoas que se amam, que se ajudam, e que não existem necessitados enquanto a gente tiver forças para lutar, para minimizar essas necessidades. Começou assim, por um amor ao evangelho que diz: 'tudo o que fizeres ao menor dos meus irmãos é por mim que fazeis'. Então eu, como cristã, quis colocar em prática essa palavra", afirma Marluce. Ela é apenas mais uma das incontáveis forças que se unem voluntariamente para complementar a assistência a migrantes quando as políticas públicas não são suficientes. ▶️ Este texto faz parte da série "Infâncias em Travessia". Com foco na primeira infância e nos impactos das políticas públicas sobre famílias migrantes, os textos discutem e mapeiam os caminhos físicos, emocionais e sociais que crianças migrantes e refugiadas percorrem na chegada ao Paraná. Acesse aqui todos os textos da série. "Corresponsabilidade e cogovernança" Marluce dedica a vida a ajudar outras pessoas Maycon Hoffmann/RPC Para Marluce, além da motivação pelo evangelho cristão, há também uma responsabilidade enquanto cidadã. Ela não enxerga o trabalho que faz apenas como uma escolha, mas como um ato de "cogovernança". "Eu acredito em uma corresponsabilidade social. Algumas pessoas falam: 'isso é questão de política pública, que o governo dê conta'. Eu acredito que é meu compromisso como cidadã, como agente do povo, ter essa cogovernança. Claro que isso nos faz também acionar os órgãos competentes, mas, às vezes, se o órgão competente não é acionado, ele nem sabe que aquela realidade existe. Ser essa ponte entre quem precisa e quem pode ajudar – seja alguém da sociedade civil, seja um órgão público –, eu acho que o caminho é esse. É uma divina aventura", defende Marluce. A abordagem seguida por Marluce e outros voluntários que atuam com ela visa colocar o migrante e refugiado como protagonista da própria história. Se um deles precisa de doação de roupas, por exemplo, pode escolher quais são as peças que combinam mais com o próprio estilo. "É uma forma de a gente respeitar a dignidade da pessoa", detalha a voluntária. Além das roupas, a organização também arrecada alimentos, utensílios de cozinha, móveis e brinquedos. "Muitas pessoas nos doam carrinhos, bonecas. Pensa: a família migrante vem sem nada, e as crianças sentem saudades dos brinquedos", detalha Marluce. A ajuda vai além das doações. Quando necessário, os voluntários encaminham os migrantes para o Centro de Referência de Assistência Social (Cras), posto de saúde, encontram alguém para traduzir e formatar um currículo, ou o que mais for preciso. No caso de Yoana, foi Marluce quem explicou a ela como acionar o Samu, caso entrasse em trabalho de parto e estivesse sozinha. Marluce com migrantes na ONG Fraternidade na Unidade Maycon Hoffmann/RPC Os problemas, no entanto, nem sempre são resolvidos apenas pela dedicação dos voluntários. Mesmo a incansável Marluce conta que, às vezes, o sentimento de impotência tenta tomar conta. Mas ela acredita que o apoio emocional é tão valioso quanto qualquer ajuda material. "Eu percebo que ser esse canal com que eles podem contar para contar suas histórias, falar dos seus problemas, vale mais do que a resolução do problema. Porque, na hora do desespero, não ter com quem contar, não ter uma pessoa com quem se possa desabafar, pedir socorro, é uma angústia profunda. Eu posso não ter nada para doar naquele dia, mas o meu tempo, meu amor, meu acolhimento, eles vão ter. E a minha logística, de acionar as redes", afirma. Vínculo O celular de Marluce não descansa. Ela conta que conversa com cerca de dez famílias de migrantes por dia. Às vezes, ela é a primeira referência que um estrangeiro tem quando decide migrar. A voluntária lembra que, em alguns casos, já chegou a receber contatos de pessoas que ainda nem tinham saído do país de origem. Para ela, esse primeiro contato é essencial para criar vínculo e acolhimento. Depois disso, a relação não se encerra com a entrega de ajuda: Marluce segue acompanhando as famílias, como fez com Yoana, a quem visitou após o nascimento do bebê. "Esse 'ser família' com cada família que nos procura, para nós, é o grande segredo. Porque só entregar algum donativo, tem tanta ONG que faz. O nosso diferencial é que a gente quer ser família. Isso o dinheiro não compra", defende. Yoana e o marido, agora com a casa já mobiliada com ajuda de Marluce e sua rede de apoio Maycon Hoffmann/RPC Outras frentes Yoana conheceu Annelys Yanet Zayas Pérez, de 25 anos, no prédio onde mora. Ambas vieram de Havana e compartilham a experiência da maternidade longe de casa. Yanet está na segunda gestação. A primeira filha, de três anos, chegou com ela ao Brasil em janeiro. Recentemente, a menina conseguiu uma vaga na creche, o que trouxe alívio e mais autonomia para a mãe. Quando chegou, Yanet queria trabalhar, assim como o marido, mas decidiu esperar ao descobrir a nova gestação. Ela lembra que muitos cubanos falavam sobre Curitiba e, por isso, ela e o marido decidiram vir para a cidade. "Meu marido dizia que o Brasil era um país colorido. E nossa filha ama música, cantar e dançar. Achamos que seria o lugar ideal para ela." As duas amigas contam que o apoio mútuo entre as mães torna mais fácil a adaptação no novo país. "Nos apoiamos muito. Falamos o mesmo idioma, viemos do mesmo país. É bom saber que há alguém que te entende", diz Yanet. Yoana e a amiga Annelys Yanet Maycon Hoffmann/RPC Marcia Ponce, secretária-executiva da Cáritas, afirma que, para mulheres que chegam sozinhas, as redes de apoio nascidas organicamente dentro das comunidades migrantes se tornam ainda mais importantes. No entanto, ela defende que é necessário pensar em políticas públicas efetivas para as mulheres, como a ampliação do número de vagas em creches. Ponce destaca que o avanço em serviços públicos para a infância beneficia não apenas as migrantes. "Também vão atender as mulheres brasileiras, que também passam por isso", aponta. Na Cáritas da Arquidiocese de Curitiba, migrantes, refugiados e apátridas encontram serviços de assistência, orientação e cursos de integração profissional. A instituição atua como ponte entre o poder público e os estrangeiros, facilitando o acesso a direitos e serviços essenciais e, quando necessário, fazendo intervenções em casos em que os migrantes não têm os direitos respeitados. Nos nove primeiros meses de 2025, a Cáritas cadastrou 11.116 migrantes. A maioria deles, venezuelanos e cubanos. Segundo Maria Fernanda Pedroso, coordenadora da instituição, as principais demandas que chegam até eles são questões relacionadas a documentação e emprego – e que normalmente têm urgência em serem resolvidas. Para Márcia Ponce, secretária regional da Cáritas , é fundamental que a construção de políticas públicas seja feita em conjunto com a sociedade civil, em especial com a população beneficiada. "Nenhum governo tem as todas as receitas prontas de se fazer um bom governo. O caminho para se construir uma mudança social acontece quando há um respeito e uma escuta qualificada de quem está na ponta, de quem executa o trabalho. O Estado não é inimigo da sociedade civil, a sociedade civil não é inimiga do Estado. Nós podemos ter divergências de pensamentos, mas nós trabalhamos pelas mesmas causas, que é o bem comum da sociedade", defende. Atualmente, Curitiba tem 27.750 estrangeiros registrados no Cadastro Único – que dá acesso à inclusão em programas de assistência social e redistribuição de renda. Além dos voluntários organizados, o cubano Yovannys Serrano Fouz, que chegou ao Brasil há pouco mais de um ano e meio, destaca a recepção dos próprios brasileiros e não se esquece das situações nas quais os nativos o ajudaram, mesmo sem o conhecer. "São coisas que estimulam, são razões pelas quais me sinto muito feliz de viver neste país", afirma. Esta reportagem recebeu apoio do programa “Early Childhood Reporting Fellowship”, do Global Center for Journalism and Trauma. VÍDEOS: Mais assistidos do g1 Paraná D Leia mais notícias no g1 Paraná.

FONTE: https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2025/10/30/agentes-invisiveis-voluntarios-complementam-assistencia-a-migrantes-quando-o-poder-publico-nao-os-alcanca.ghtml


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